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Nunca é tarde demais: diário de uma adolescente



*16 de junho de 1955*

 

Achei um diário velho na rua, achei que fosse de alguém até perceber que estava vazio. Trouxe-o para casa e decidi guardar debaixo do travesseiro da minha cama. Ao anoitecer, tive que ajudar minha mãe a fazer o jantar para quando meu pai fosse chegar do trabalho ter o que comer. Me atrapalhei todinha. Minha cabeça só pensava em escrever. 

– Filha, me ajude a preparar a mesa, seu pai já está voltando do trabalho. 

Papai chega. Eu e mamãe já montamos a mesa para ele. Rezamos e comemos.

 

*17 de junho de 1955*

Despertei às 7 horas com a conversa dos meus pais. Levantei da cama e fui direto para a cozinha. Papai e mamãe estavam brigando por alguma coisa, não sabia o que era de início. Até perceber que estavam falando sobre o meu futuro. 

– Bom dia! 

– Bom dia. - Responderam. 

Me assustei. Afinal, é o meu futuro. Ainda, sem saber o que eles estavam a falar, decidi já ir adiantando os afazeres domésticos. Como papai se levanta muito cedo, tive que guardar a mesa do café da manhã. Mais tarde ajudei mamãe com a poeira dentro de casa.

 

*18 de junho de 1955*

Não tenho muito tempo para escrever, aqui é trabalhar para comer. Não posso deixar mamãe se sobrecarregar com os afazeres domésticos. Papai está sempre cansado do trabalho. Tenho que ser útil. Não sei o que escrever. Não sei o que botar aqui. Está calor. Eu odeio calor. Já pensou se meu quarto tivesse uma janela? Seria bem melhor. Pelo menos tem uma porta lá na sala. Mas um pedaço de pano na entrada do meu quarto não é nada mal.  Minha cama tá quebrada.  Meu colchão tá velho. Eita vida arretada. Vou trocar de roupa. Papai e mamãe vão conversar comigo. Acho que é algo sobre o mesmo papo de ontem. Meu futuro.

 

*19 de junho de 1955*

Papai quer que eu me case. Me casar pra quê? Tô assustada. Tô com medo.

 

*20 de junho de 1955*

Papai veio com o mesmo papo furado. O pior é que eu não consigo manter uma conversa dessas sem chorar. Papai disse que eu sou muito infantil e que eu precisava crescer para alcançar as coisas da vida. Que vida? Eu não quero essa vida. Ele disse que um amigo dele tem um filho. Mas eu não quero saber do filho do amigo dele. Eu quero escrever.

 

*21 de junho de 1955*

Papai não está falando comigo. Disse que tinha vergonha da minha forma de pensar. Mamãe não concordou, mas também não falou nada. Talvez eu fique um tempo sem escrever.

 

*25 de junho de 1955*

Afastei-me um pouco do diário para trabalhar mais em casa. Apesar de estar muito triste com meus pais, não quero ficar sem falar com eles. Hoje ajudei mamãe com a louça e passei a roupa do papai. Mamãe caiu nos braços de Morfeu, coitadinha. Papai se vestiu e foi trabalhar. O serviço o aguarda. Eu sempre anoto os itens que estão em falta dentro de casa e ponho próximo da geladeira. É lá o lugar que não se esquece. Quando fui pegar um copo d'água, me lembrei dos itens que estavam em falta dentro de casa. Sempre que papai recebe ele deixa um dinheiro separado para mamãe fazer a feira. Como mamãe estava muito cansada decidi eu mesma proceder.

 

*26 de junho de 1955*

Qual o meu problema? Será que eu sou anormal das outras garotas? Eu não sei se toda menina sonha em ser casar e ter filhos, mas eu não. Eu gostaria muito de ter um livro sobre como é ser mulher. Para entender mais o que se passa na minha cabeça. Será que tudo isso é real?

 

*27 de junho de 1955*

Acordei um pouco mais tarde do que o normal. Acho que é porque não consegui dormir direito pensando em tudo isso. É muita coisa. Papai diz estar triste por eu discordar dele. Mamãe também. Mas é tão ruim assim discordar das coisas?

 

*28 de junho de 1955*

A madrugada foi fria. Choveu muito. A parede do meu quarto abriu um buraco pequeno.

 

*29 de junho de 1955*

Meus pais saíram. Não me disseram para onde foram. A casa não está tão bagunçada porque me encarreguei de deixá-la um brinco ontem de noite. Não consegui dormir. O sol está cheio. Uma luz forte passa pelo pequeno buraco da parede do meu quarto. Tenho uma janela.

 

*30 de junho de 1955*

Papai disse que eu não tinha escolha. Eu terei que me casar logo mais. Eu esperei para que ele fosse trabalhar novamente e corri para os braços de mamãe. Chorei. Eu só conseguia pensar nas coisas que meu pai me fez pensar no escuro. Acho que nem uma porta no meu quarto pode me defender da vida lá fora.

 

*1 de julho de 1955*

Chegou o dia do pagamento do papai. Achei que ele fosse pedir para eu e a mãe fazermos a lista dos itens para dentro de casa. Mas ele veio com um papo estranho de economizar grana para não faltar coisas no dia. Estranhei. Até porque não tinha o que economizar. Não passamos fome, graças a Deus. Mas também não somos ricos. A gente não vive de água. Mas eu não comentei nada. Até porque meu pai é o líder da família. Ele sempre sabe o que faz. É ele que nos lidera quando tudo parece desabar.

 

*2 de julho de 1955*

Acordei assustada. Meu quarto estava cheio de algo parecido com palha. Sabe a parte de baixo da vassoura? É o filho dela. É mais pequeno. Só depois percebi que o filhote da vassoura era na verdade um outro filhote. Os passarinhos estavam construindo uma família em cima do telhado da minha casa. Eles não têm medo? Da tempestade espalhar tudo aquilo que eles construíram e fazer com que os pequenos pedaços sejam varridos por vassouras?

 

*3 de julho de 1955*

Mamãe está doente.

 

*4 de julho de 1955*

Mamãe está muito doente.

 

*5 de julho de 1955*

Papai está trabalhando mais que o normal. Ele está querendo conseguir uma grana para levar a mamãe ao médico. É muito caro. Mas é o que ele tem a oferecer. Eu estou sem tempo para escrever, então, ficarei afastada um pouco dos meus pensamentos.

 

*12 de julho de 1955*

Aqui estou eu novamente. Mamãe está com uma doença nos ossos. Mas ela é muito forte. O papai conseguiu uma consulta médica. Ela só precisa descansar e tomar os remédios certinho. Eu  prometi que iria cuidar da casa e preparar a comida para nós três. Também irei lembrá-la de tomar seus remédios para que ela melhore logo.

 

*13 de julho de 1955*

Mamãe dormiu. Ela está triste por tudo que está acontecendo. Mas eu passo uma calmaria, assim como ela fazia comigo quando pequena. Passo minhas mãos em seu cabelo liso e escuro até ela adormecer. Aqui estou eu. Torcendo para minha família e para os passarinhos que estão sob minha cabeça.

 

*18 de julho de 1955*

Estou tão sobrecarregada que não consigo mais pensar. É trabalhar para poder ir dormir logo em seguida.

 

*20 de julho de 1955*

Hoje quase esqueci dos remédios da mamãe.

 

*21 de julho de 1955*

O dia amanheceu frio. Como será que estão os passarinhos?

 

*22 de julho de 1955*

Mamãe dormiu. Papai ainda não chegou do trabalho.

 

*23 de julho de 1955*

Papai está muito alterado ultimamente. Eu o entendo, mas ficar bravo comigo não vai resolver as coisas.

 

*24 de julho de 1955*

Os remédios da mamãe acabaram hoje. Estamos sem dinheiro para pagar o retorno médico. Mas papai vai dar um jeito, eu sei que vai.

 

*25 de julho de 1955*

Hoje decidi que vou parar de participar das três refeições diárias. Assim, será mais econômico para o papai conseguir juntar para o médico da mamãe.

 

*26 de julho de 1955*

Papai conseguiu o dinheiro. Estou feliz.

 

*27 de julho de 1955*

Mamãe está bem.

 

*28 de julho de 1955*

Aos poucos, mamãe volta a fazer as coisas dentro de casa. Acho que vou escrever mais.

 

*29 de julho de 1955*

Hoje eu vi o papai chorando. Tivemos aquela conversa novamente. Vou me casar.

 

*30 de julho de 1955*

Meu pai ligou para o amigo dele. A família dele vai visitar a minha. Vamos nos conhecer.

 

*31 de julho de 1955*

Alto, magro, cabelo escuro e olhos castanhos. O horror da minha vida.

 

*1 de agosto de 1955*

Amanheceu diferente. Agora que as coisas dentro de casa não estão tão boas, preciso me casar para poder me sustentar. Não sei o que estou fazendo, só sei que estou. Conhecemos a família do rapaz. São pessoas boas. Mas eu não quero isso para minha vida. Mas o que posso fazer? Agora sou uma mulher. Não posso mais escrever.

 

*2 de agosto de 1955*

Observei a vida lá fora pelo pequeno buraco na minha parede.

 

*3 agosto de 1955*

Hoje, descobri que o meu casamento já estava arranjado há muito tempo. Papai e mamãe só não tiveram coragem o suficiente para me dizer. Mas também descobri que os passarinhos não estão mais em cima do meu telhado. Eles foram embora. Voaram para longe.

 

*4 de agosto de 1955*

Meus dias em casa já estão contados. Mamãe já está bem melhor. Foi à feira e me trouxe um vestido longo. Disse que meu futuro marido iria amar eu usando esse tipo de roupa. Vestidos não são confortáveis.

 

*5 de agosto de 1955*

Os pais do meu futuro marido falaram na possibilidade de eu ser mãe. Não quero ser mãe. Pelo menos não agora.

 

*6 de agosto de 1955*

A cerimônia já está em prosseguimento.

 

*7 de agosto de 1955*

A mãe do meu futuro marido mandou jogar o diário fora. Mulher não tem tempo para isso, disse. Hoje o dia foi cansativo e eu nem fiz nada. Se pensar em coisas ruins for algo, então fiz tudo. A escuridão me constrói aos poucos. Estou cansada.

 

*20 de agosto de 1955*

O dia chegou.

 

*21 de agosto de 1955*

Estou casada.

 

*29 de agosto de 1955*

 Escrevo em data diferente porque as outras estão molhadas com minhas lágrimas. Será que a mamãe e o papai se casaram por estarem apaixonados e acharem que merecem viver uma vida juntos para sempre? Ou eles só se casaram?  

A casa é grande. Tem janelões por tudo que é lugar. Também tem porta nos quartos. Parece que está tudo bem, mas não está. Eu não sou essa pessoa.

 

*30 de agosto de 1955*

Me recuso a deitar com esse estranho. Meu Deus, o que estou fazendo comigo mesma? Ajude-me, por favor.

 

*1 de setembro de 1955*

Meu quarto não tem um buraco pequeno na parede.

 

*2 de setembro de 1955*

Ele está bêbado. Que nojo.

 

*3 de setembro de 1955*

Estou sentada no sofá da sala de estar, ele ao abrir a porta do banheiro caminha em direção na esperança de me levar para cama. 

– O que acha de hoje? - Ele pergunta. 

– O que eu acho de hoje? Não acho nada. - Respondo. 

Ele segura meus braços com suas mãos grandes e fortes e começa a me chutar. Pediu para que eu entrasse no banheiro. Eu implorei para que ele não fizesse nada comigo. Só conseguia pensar em papai e mamãe. Eu quero a minha mãe.

 

*10 de setembro de 1955*

Acabo de me recuperar da surra que levei do meu marido. Só agora consigo manter contato com a caneta. Não tenho o que escrever. Quero morrer. Apenas.

 

*11 de setembro de 1955*

Ele trouxe uns amigos para cá. Disse-me para não ficar trancada no meu quarto como uma doente. Mas eu estou doente.

 

*12 de setembro de 1955*

Acordei com o rosto inchado por ter interagido com um homem na festa. Ele não é uma pessoa boa.

 

*13 de setembro de 1955*

Papai e mamãe para sempre.

 

*14 de setembro de 1955*

Ele me proibiu de sair. Disse que lugar de mulher é dentro de casa.

 

*15 de setembro de 1955*

Estou escrevendo de madrugada, porque não aguento mais essa angústia dentro de mim. Dormi com ele. Me sinto uma imunda. Como vou me curar? E agora? As letras estão borradas por causa das minhas lágrimas. É difícil manter a escrita sem fazê-las escorrer.

 

*16 de setembro de 1955*

Hoje, percebi que meu diário está incompleto. As páginas não estão mais seguindo um ritmo. Por isso, não vou escrever todos os dias. Essa é a minha única fonte de esperança. Escrever.

 

*23 de setembro de 1955*

A exaustão me vence todos os dias. Estou cansada de vê-la vencer. Não dá mais. Eu preciso fugir daqui.

 

*24 de setembro de 1955*

Hoje eu decidi que iria fugir. Mas eu não sei pra onde ir. Será que meus pais me aceitariam? 

O medo me corrói, pois não sei o que seria de mim caso meu marido descubra toda essa minha tramóia. Peço a Deus para que dê tudo certo.

 

*25 de setembro de 1955*

Quando eu cheguei na casa dos meus pais, descobri que eles tinham morrido. Meu pai estava devendo dinheiro a uns homens e eles fizeram isso com meu pai e minha mãe. Estou sozinha, não posso voltar para a casa do meu marido. Preciso encontrar um lugar seguro. 

 

*26 de setembro de 1955*

Passei a noite na casa dos meus falecidos pais. Acho que meu marido se deu conta de que não estou em casa. Eu preciso me distanciar daqui.

 

*27 de setembro de 1955*

Estava andando pelas ruas até que vi um folheto com um anúncio de um lar para mulheres. Tomei o folheto pra mim e vou procurar desse lar. Espero encontrá-lo antes que o meu marido me encontre.

 

*28 de setembro de 1955*

Estou sem ter pra onde ir. Encontrei uma tesoura, talvez ela sirva pra algo. Estou com muita sede, muita fome, minha boca está resseca, meu cabelo uma bagunça.  Encontrei, também, um cachorro que, infelizmente, estava na mesma situação que a minha. Decidi levar comigo. Milagrosamente, encontrei um cano que jorrava água. Catei uma garrafa que estava no chão, usei a tesoura que tinha encontrado mais cedo para cortar a garrafa e fazer um recipiente para que o cachorrinho e eu bebêssemos água. As folhas do meu diário acabaram, então terei que usar o folheto do lar das mulheres para escrever os acontecimentos do dia a dia. Espero que consiga, pois a escrita é tudo que eu tenho agora.

 

*29 de setembro de 1955*

Hoje eu fui numa padaria tentar ver se conseguiria algo para comer. Por sorte, o padeiro disse que daria pão, porém, teria que ser apenas um, para que ele não ficasse no prejuízo. Eu olhava para o cachorrinho e o via todo tristonho quase desmaiando de fome e dei a ele o pão que eu segurava. Eu aguento mais alguns dias, já o cachorro não, e eu não quero perde-lo, pois estamos juntos nessa. À noite tivemos que ficar em um papelão, por sorte não choveu, pois nos molharíamos e estragaria, também, minha fonte de felicidade: meu folheto, que estava fazendo de diário. Que Deus nos abençoe para que possamos sair logo dessa situação.

 

*30 de setembro de 1955*

O padeiro soube que eu estava a procura do Lar das mulheres e que eu precisava de dinheiro. Ele disse que se eu varresse a padaria, ele me dava o valor da passagem. Enquanto eu estava varrendo, ele pediu para que eu ligasse a televisão. Estava passando um noticiário. Meu marido foi preso por ser usuário de drogas. Menos uma preocupação para minha vida. Terminei de varrer, ele me deu o dinheiro e eu pude ir para a estação com a companhia do Billie, acho que ele merece um nome, já que ele me acompanhou nessa jornada longa. Espero encontrar esse lar, assim minha vida mudaria por completo. 

 

*27 dezembro de 1955*

Querido diário, hoje, decidi escrever de uma forma diferente. Estou escrevendo pouco, mas pela primeira vez, me sinto completa. Meu trajeto até aqui foi grande, porém, no fim, tudo valeu a pena. Agora, novamente, possuo uma família. Elas me acolheram e me deram amor desde o primeiro momento em que eu pisei aqui no Lar. Consegui um emprego numa cafeteria. Sirvo o café e escrevo o cardápio às vezes. Meu cachorrinho Billie está bem, saudável e muito animado. Eu tenho amigos agora, participo de uma organização não governamental. É algo novo. Nosso objetivo é ajudar o máximo de pessoas possíveis. Farei de tudo para que nenhuma outra pessoa passe pelo o que eu passei. Tudo o que me restou foram as euforias diárias. Quando vou repousar, lembro sempre dos meus pais, a saudade que eu sinto deles é imensurável. Porém, hoje eu sou forte. Elas me ajudaram a ser forte.

 

*1 de janeiro de 1956*

Essa foi só uma parte da minha história até agora. Eu nasci de novo.


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